Nada voltará a ser como antes. A pandemia transformou o mundo e a forma como o habitamos. Em oito meses, a covid-19 acelerou o processo de digitalização das empresas e a um ritmo muito superior ao verificado nos últimos anos. Não haverá marcha-atrás tecnológica. E no aftermarket automóvel, não será diferente.
A revolução é global e a resposta das empresas do setor (e das marcas por si representadas) terá de ser de igual dimensão. Em entrevista ao Check-up, Joaquim Candeias defendeu que o setor terá de abrir-se ao mundo e ao consumidor final, dando prova de vida numa nova realidade.
O palco do encontro foi a oficina SportClasse. Um santuário da Porsche e um hino ao legado do antigo e eterno campeão nacional de ralis, Américo Nunes, cuja descendência encontra em Jorge Nunes e André Nunes, filho e neto, respetivamente, os melhores anfitriões.
O managing director do bilstein group, presidente da Divisão do Pós-venda Automóvel Independente (DPAI) da ACAP e membro do board da FIGIEFA, o “Senhor Aftermarket”, mostrou-se “completamente fascinado” (ver vídeo abaixo) com o universo do “Senhor Porsche”.
E com a autêntica visita que fez à sua própria juventude, espelhada na imagem de modelos como o 911 2.0 S de 1967, o mais vitorioso de todos em provas nacionais. Tudo muda. Menos a paixão pelos nossos heróis e automóveis de eleição. Pelas peças e pelos detalhes que os definem. Uma conversa com os olhos no presente e no futuro, mas com o coração no passado.
Ainda antes de entrarmos na entrevista, não resisto a comentar o espaço onde nos encontramos, a SportClasse, um autêntico paraíso da Porsche. Foi uma espécie de viagem ao seu passado…
É indescritível. Fiquei fascinadíssimo. Desconhecia completamente este espaço e, isso, é inaceitável. Porque qualquer pessoa que goste de automóveis, como eu, tinha obrigação de conhecê-lo. Vou promovê-lo e partilhar com os meus amigos. Revivi aqui momentos fantásticos. Quem fundou esta empresa foi Américo Nunes, que fez história nas nossas corridas. Era um teenager na altura, mas marcou-me porque vivi grandes momentos a vê-lo correr. Deixou-me boas lembranças e revivi-as todas agora.
Focando-nos agora no tema da entrevista… Como tem visto a reação do setor à pandemia, tendo em conta a sua experiência nacional e internacional?
Apesar de todas as dificuldades, vejo esta situação com algum otimismo e considero que a reação do setor tem vindo a ser de um grande profissionalismo, quer a nível nacional quer internacional, demonstrando, uma vez mais, grande rigor e precisão nas ações tomadas em muitas das empresas do IAM, nos diferentes níveis da cadeia de distribuição, o que, certamente, as colocará numa posição mais favorecida em relação a outras, que, infelizmente, estão a sofrer muito com esta pandemia e não estão a reagir adequadamente. Isto significará, como sempre, oportunidade para uns… e, infelizmente, grande dificuldade para outros!
Acredita que a transição digital do pós-venda nacional será acelerada pelos tempos que estamos a viver?
Tenho a certeza! Na verdade, o “digital” veio para ficar e conviver connosco para sempre e de um modo irreversível. Hoje, segundo a DataReportal, a percentagem de penetração de utilizadores de Internet em Portugal já é de 83% e de utilizadores das redes sociais é de 69%, significando isto que já se consome, diariamente, o mesmo tempo (mais de duas horas) a navegar nas redes sociais do que em frente a um ecrã de televisão. Por essa razão, e porque o contacto pessoal, hoje, está um pouco comprometido, a aceleração do desenvolvimento de plataformas, ferramentas e soluções digitais são a grande oportunidade e o recurso para tudo!
A mudança foi paradigmática. No seu caso particular, a covid-19 travou a fundo com o ritmo de viagens profissionais que tinha de fazer…
É verdade. Se me perguntasse, há um ano, se eu iria parar de viajar com a frequência quase semanal para o estrangeiro, ter-lhe-ia dito que seria impossível. Mas a covid-19 alterou completamente o meu ritmo a nível de viagens, obrigando-me a uma adaptação imediata a soluções digitais, que, hoje, vejo com alguma clareza a sua continuidade e a rentabilidade a melhorar de dia para dia. Assim, vejo-me cada vez mais rendido a abandonar o antigo estilo de vida, pelo menos em grande parte, porque, além de cansativo, talvez em certas situações não fosse assim tão mais eficiente.
Como tem o Joaquim Candeias vivido estes dias complicados? Mudou muito as suas rotinas?
Sem dúvida que alterou completamente o meu modo de estar na vida. Eu que era uma pessoa que gostava de projetar o futuro, com planeamentos e estratégias de médio e longo prazos, vejo-me, hoje, num mundo tão desafiante que a planificação e as decisões a tomar são quase diárias, alterando completamente as minhas rotinas, algo que estou a tentar apreciar cada vez mais!
Num mundo global, o aftermarket continua a estar muito fechado sobre si mesmo. Seria vantajosa (ou mesmo desejável) uma maior abertura do setor a novos universos, nomeadamente ao cliente final?
Do meu ponto de vista, esse é, inevitavelmente, o caminho a seguir, com um posicionamento do nosso negócio cada vez mais aberto ao consumidor final, onde, hoje, a sua intervenção é praticamente nula.
As novas tecnologias que a telemática nos traz e os novos meios de comunicação com o condutor do veículo através de smartphones, irão, garantidamente, proporcionar um maior envolvimento do dono do veículo na opção de escolha onde reparar e como reparar o seu veículo.
É aqui que, caso o conhecimento das marcas disponíveis no mercado do IAM continue a ser um mundo desconhecido para o dono do veículo, tornará a tarefa deste bem mais difícil e desajustada no momento da decisão.
Daí eu considerar ser importante a abertura na divulgação das boas opções do aftermarket independente ao consumidor final, de modo a que a sua opção possa recair no nosso mercado, em primeiro lugar, e com melhores índices de conhecimento e confiança.
O que poderão as marcas fazer para valorizar e dar a conhecer mais o seu nome, sendo certo que, no futuro, porventura não muito longínquo, as decisões de compra de uma peça estarão ao alcance de um smartphone?
As marcas, para que possam fazer parte do futuro, terão de ser certificadas e corresponder aos requisitos de qualidade exigidos pelos fabricantes dos veículos, como base para qualquer ação ou atividade no futuro.
Com esta base, poderão incorporar as plataformas de dados de informação, quer para identificação de peças ou para manutenção/reparação dos veículos, sendo, desde logo, um meio privilegiado e próprio de promover a suas marcas, possibilitando ao consumidor final a opção de escolha por comparação e de um modo fácil e rápido.
Estas serão opções que estarão cada vez mais disponíveis no smartphone de cada um. E se as marcas do IAM não trabalharem adequadamente a sua imagem e posicionamento num mercado aberto, dificilmente terão a continuidade do negócio que, hoje, apresentam.
Em 2023, terminará o Block Exemption Regulation. Como poderá o setor compensar uma (eventual) maior dificuldade no acesso à informação técnica?
O BER (Block Exemption Regulation) é um regulamento que concede o direito ao dono do veículo de reparar a sua viatura, desde o quilómetro zero, onde quiser, sem perder a garantia do fabricante. A principal razão pela qual este regulamento existe é para que o consumidor final possa ter opção de escolha no momento de uma manutenção/reparação, sem perder a garantia do fabricante do seu veículo.
É evidente que a garantia da intervenção efetuada será sempre de quem a efetuou! Infelizmente, muita gente desconhece esta possibilidade que a lei lhe concede e que estará em vigor até 2023.
No entanto, a FIGIEFA já está a preparar um dossier para submeter ao Parlamento Europeu, a fim de que seja promulgada a lei e que seja mais especifica e abrangente para o setor automóvel, passando a ser MVBER (Motor Vehicle Block Exemption Regulation) a partir de 2023, forçando os fabricantes dos veículos a cumprir devidamente o regulamento e a conceder as informações necessárias para a sua concretização.
O Repair Maintenance Information (RMI) cumpre com as necessidades do setor, nesta matéria?
O RMI (Repair Maintenance Information) estará inserido no conceito OTP (Open Telematic Platform), que será uma plataforma de acesso a dados/funções do veículo, com interação com o condutor via HMI e com acesso a recursos de software do veículo.
Assim, será a base para se ter a informação para intervencionar um veículo no futuro no aftermarket independente em qualquer momento. Este é um tema que está em cima da mesa, onde, uma vez mais, a FIGIEFA está muito envolvida e junto do Parlamento Europeu, a fim de garantir o acesso à informação para reparar/intervencionar um veículo no setor independente.
Este terá de ser um acesso bidirecional a funções de padrão a diagnósticos profundos com mais de 500 pontos/funções de dados padronizados por nome, de modo a ser seguido por todos os fabricantes de automóveis e, assim, criar as condições iguais para todos. Mais um grande desafio, que, certamente, irá alterar o nosso negócio consideravelmente no futuro!