Em 2021, a BASF faturou cerca de 76 mil milhões de euros. Deste valor, aproximadamente 40% esteve relacionado com o mundo automóvel. A área de revestimentos (coatings) assume, por isso, uma importância fundamental dentro do grupo, razão pela qual, em Portugal, à semelhança de outros países, opera de forma independente dos restantes negócios do gigante alemão.
Nesta entrevista, captada pela objetiva de Estelle Valente, Victor Guerra Videira, managing director da BASF Coatings Services, abordou desde a forma como o grupo está organizado no nosso país até ao difícil contexto geopolítico internacional que se vive, passando pelo desempenho das três marcas que gere na área da repintura, pelo futuro da profissão de pintor de automóveis e pela digitalização do setor.
As instalações do Prior Velho concentram, na realidade, duas organizações: BASF Coatings Services e BASF Portuguesa. Queres explicar-nos este “organigrama”?
É muito fácil… Na realidade, a BASF é só uma. Trata-se de uma organização com várias divisões. À semelhança de outros países, a BASF decidiu que uma das áreas que mais-valias cria sendo independente dentro da “grande” BASF, pelo menos localmente, é a coatings. Por isso, em Portugal, temos duas organizações BASF.
Uma, BASF Portuguesa, agrega todas as unidades de negócio que não a coatings. Quer isto dizer, agricultura, plásticos transformados, química pura… Todos os negócios, à exceção de petróleo e gás, que não temos representação em Portugal, são da responsabilidade da organização BASF Portuguesa.
A área de coatings, ou seja, tudo o que está relacionado com revestimentos e pintura, quer de primeiros equipamentos quer de refinishing (repintura), estão, efetivamente, sob a responsabilidade da coatings.
É uma forma de prestar melhor serviço, de garantir melhor qualidade e de ter maior proximidade. E também nos dá alguma liberdade para trabalhar o mercado, que é feito de forma diferente. Porquê? Porque no “mundo” BASF, já estamos muito próximos do consumidor final. O que cria dificuldades internas, uma vez que sendo a BASF uma empresa de grandes volumes e de química, passa a ser, em certas alturas, uma organização muito lenta na resposta quando já se está demasiado próximo do consumidor final.
E, esta, é a principal razão que levou a BASF a decidir “afastar”, definitivamente, a grande corporação destes negócios mais pequenos e mais próximos do consumidor final, o que acaba por trazer vantagens a nível de agilidade, flexibilidade e capacidade de resposta ao mercado.
Que importância assume a Divisão de Revestimentos (Coatings) no setor automóvel numa estrutura como a BASF, que está presente, como referiste, em várias indústrias?
A BASF trabalha em estreita cooperação com clientes/fabricantes do setor automóvel em todo mundo. Fornecemos e desenvolvemos materiais e soluções funcionais que permitem que os veículos sejam construídos e funcionem com maior eficiência.
A nossa gama de produtos inclui plásticos de engenharia, espumas de poliuretano e especiais, revestimentos/pintura, pigmentos, catalisadores, lubrificantes de eixo e de transmissão, aditivos para combustível, fluidos refrigerantes e de travões, além de materiais para bateria, onde incluímos, também, a parte de coatings.
Para dar uma ideia da dimensão, a BASF faturou, em 2021, cerca de 76 mil milhões de euros. Deste valor, cerca de 40% está relacionado com o mundo automóvel. Creio que está é uma forma de fechar um ciclo, pelos volumes, pela proximidade e pela criação de valor. Enquanto organização, consegue, claramente, estar em todas as etapas do fabrico do veículo e da área automóvel, em geral. Por isso, a área de coatings é bastante importante para a BASF.
Onde estamos a fazer mais investimentos enquanto organização, é na área das baterias à medida que a tecnologia avança. Não nos podemos esquecer que as baterias são química pura, díodos e, aqui, claramente a empresa está a fazer fortes investimentos, com algumas aquisições. Para além de muita investigação e desenvolvimento que já tinha, está, também, a efetuar pequenas aquisições, uma vez que pretende ser um dos principais players a nível mundial também nesta área.
Como são as regras de convivência entre as três marcas do grupo dedicadas ao setor automóvel (R-M, Glasurit e Baslac), sendo as duas primeiras premium e a última mais para o segmento médio?
Na realidade, todas elas são concorrentes e atuam dessa forma. Mas cada marca tem responsabilidades próprias, objetivos específicos e, obviamente, concorrem, sobretudo as duas premium, no mesmo mercado. Mas respeitam-se mutuamente, como, aliás, qualquer concorrente de outra empresa. As nossas três marcas diferenciam-se, desde logo, na sua génese e na relação que têm.
O que distingue as marcas premium das não premium é o reconhecimento e a homologação técnica por parte dos fabricantes de automóveis. Isto não é uma presunção, mas é, efetivamente, a assunção de todo um trabalho de qualidade reconhecido por quem utiliza os produtos.
É daqui que vem a relação que existe, por exemplo, na marca R-M, muito mais relacionada com os fabricantes franceses, país onde temos a nossa fábrica da R-M na Europa. Já a Glasurit, está muito mais relacionada com os fabricantes alemães, uma vez que a unidade de produção da marca está situada na Alemanha.
O que faz com que, depois, o relacionamento seja muito mais próximo por razões, digamos, históricas, que acabam por trazer vantagens às marcas nos países em que estão disponíveis.
Por último, foi a evolução do mercado, que demonstrou, claramente, que existe um segmento que, além de ter um crescimento muito interessante, precisávamos de dar solução. E só trazendo uma marca nova, com valores diferentes, mais simples, com um preço muito mais adequado (a que chamamos value for money), tal seria possível.
A Baslac é, claramente, a marca que queremos fazer crescer nos próximos anos, acima daquilo que é o crescimento natural do mercado premium e do setor da repintura. As primeiras etapas já foram percorridas. Temos uma rede de distribuição minimamente consolidada, que nos permite uma cobertura nacional, e já começámos com a nossa equipa de venda direta.
Creio que, nos próximos anos, a Baslac vai ter um crescimento exponencial. Mas sempre dentro daquilo que é apanágio do grupo e que está na sua génese, ou seja, a qualidade.
De que forma está a Guerra na Ucrânia a afetar o negócio internacional do Grupo BASF, numa altura que a Alemanha está a preparar a independência de gás natural fornecido pela Rússia?
É, de facto, um contexto internacional difícil. Primeiro, a nível humanitário, que é a parte que todos mais sentimos. Depois, do ponto de vista empresarial. A BASF nasce e tem o monopólio industrial situado em Ludwigshafen, na Alemanha, cuja dependência da energia promovida pelo gás é, claramente, muito grande.
A guerra pode vir a afetar, de facto, o negócio, não apenas a curto como, também, a médio prazo. É do conhecimento público que a BASF detinha mais de 50% do Nord Stream 2 (o projeto já foi abandonado e essa empresa foi dada como insolvente, com todos os prejuízos que tal acarreta) e tem uma dependência do gás.
A BASF tomou, creio que forma corajosa e muito cedo, a decisão rápida de retirar investimento dos mercados russo e bielorusso, nos quais já não está presente, mas garantindo aos colaboradores desses países o pagamento integral de salários até final de 2022.
Na Rússia e na Bielorússia, a BASF apenas vai manter o negócio relacionado com a alimentação para evitar problemas que afetem, a nível internacional, todas as pessoas que estão localizadas nos países do terceiro mundo. Foi uma decisão difícil, mas que o grupo entendeu tomar.
Depois, como todas as empresas que tenham alguma dependência das matérias-primas a nível mundial, existirão consequências. Desde logo, da parte da energia e do petróleo, com o aumento do custo que todos estamos a sentir, mas, também, do fornecimento de matérias-primas provenientes da Rússia e da Ucrânia para a Europa.
Se a isto juntarmos os problemas da distribuição e dos portos da China, sem esquecer a pandemia que ainda não terminou, as dificuldades logísticas são imensas.
Para dificultar ainda mais, a política “zero-Covid” da China gera um “caos” a nível internacional cada vez que o país regista novos casos de infeção e entra em confinamento. Em que medida afeta esta situação o negócio do Grupo BASF?
Tem, obviamente, impacto no negócio do grupo, embora nem sempre seja fácil de medir. O nosso mercado continua a ser muito na Europa e nos EUA. Na China, também estamos presentes, mas com muito menos dependência. Mas é importante percebermos que grande parte das matérias-primas e alguns produtos transformados acabam por provir da China.
Os confinamentos fazem com que os navios não possam sair do porto de Xangai, um dos maiores do mundo, sempre que é detetado um caso positivo de covid-19 na China. O que cria um caos adicional. Primeiro, devido à subida dos preços dos fretes marítimos e, depois, por via da incapacidade que os portos europeus têm de fazer atracar os barcos e descarregar a mercadoria quando a afluência é enorme e simultânea. Mas é muito difícil percebermos até onde vão estes problemas a médio prazo.
Esta situação cria muito stress nas cadeias de abastecimento. Os próximos meses constituirão um desafio muito grande. A BASF é uma grande produtora. Consegue criar entre 2.000 e 2.500 referências diferentes, que são integradas no mesmo polo. As eficiências que temos vindo a conseguir e a nossa política de armazenamento ajuda-nos a estar um bocadinho tranquilos em relação a esta questão.
Ainda assim, os problemas têm vindo a agravar-se e a situação é, de facto, extremamente complexa. Para já, trabalhar numa empresa como a BASF é uma das vantagens até ao momento, fruto da sua capacidade de armazenamento. Hoje, os clientes só nos pedem que continuemos a fornecer. Já não colocam tantas questões a nível de preço e de serviço. Os clientes só querem ter as matérias-primas nas suas unidades para continuarem a produzir. Esta é a realidade atual.
Que balanço fazes do percurso das vossas marcas no mercado português? Existe margem para crescimento? E a Baslac, tem criado concorrência interna?
Existe, claramente, margem para crescimento. O mercado português é maduro, como quase todo o mercado europeu, mas tem potencial de crescimento.
É um mercado que assiste muito à entrada e saída de pequenos players, que ocupam o seu espaço por direito próprio, mas que, normalmente, são projetos que designamos de raid, sem uma base sólida, que vendem o produto por preço e com baixa qualidade.
No entanto, são esses projetos que, por vezes, nos criam oportunidades. Os produtos de baixa qualidade na área da repintura acabam por não ter grande futuro. Por diversas razões. Primeiro, porque a eficácia fica aquém daquilo que o utilizador espera. Depois, porque as margens para quem faz este negócio acabam, muitas vezes, por revelar-se insuficientes para tornar a atividade rentável, pelo menos a médio prazo.
Daí termos sentido que havia uma oportunidade num segmento onde, por natureza, não estávamos e nem queríamos estar. A Baslac será a marca que irá crescer nos próximos anos. E tem vindo a crescer desde o seu lançamento, na ordem dos 30 a 35%, dependendo dos anos. Ou seja, muito acima aquilo que é o crescimento do mercado maduro.
Como a Baslac não concorre no mercado premium, o que se pode concluir é que alguém está a deixar de estar presente neste tipo de mercado, mais de preço. A capacidade de “canibalização” dentro do grupo é inferior a 1%. O que quer dizer que, para já, esta “canibalização” não existe. Mas os cenários a médio prazo podem alterar-se.
No entanto, a verdade é que, pela forma como o mercado português está estruturado, acreditamos, claramente, que continua a existir um espaço que vai ter um desenvolvimento positivo, com um crescimento, digamos, mais orgânico de aquisições e consolidação do mercado da repintura value for money.
Qual é o grande desafio do Grupo BASF para 2022?
A pandemia continua a ser um dos problemas, pois exerce uma pressão sobre nós, enquanto empresa, e sobre os nossos clientes. Os pequenos surtos que vão aparecendo ainda causam alguma perturbação, afetando ou até mesmo parando a produção de pequenas fábricas. O que gera muita incerteza.
Contudo, à exceção de 2020, 2021 já foi, para nós, um ano de recorde. Sendo o Grupo BASF forte, estava preparado para a retoma da atividade, marcado por uma procura maior do que oferta. E, isso, tem-nos trazido vantagens acrescidas, uma vez que nos permite ultrapassar os problemas da distribuição, ainda que também tenhamos sentido dificuldade na obtenção de matérias-primas junto de alguns fornecedores, com implicações a nível de preço e quantidade disponível.
Creio que o desafio se coloca muito mais na ótica da estabilidade geopolítica. Esta sim, é a principal preocupação, que tem a ver com percebermos que implicações o atual contexto vai ter a médio prazo. Hoje, mais do que nunca, fazer futurologia é um exercício difícil.
Encerrámos o primeiro trimestre de 2022 com recordes a nível de vendas e de rentabilidade, mesmo sabendo que existem áreas que sofreram mais e que têm problemas graves. Mas, no global, para o grupo continua a ser muito positivo. Mas temos de pensar que existem momentos de viragem na economia. Pela primeira vez em décadas, temos a inflação e as taxas de juro a atingirem máximos históricos.
O que se reflete no consumo pessoal e nas movimentações da indústria, ainda que a economia esteja a atravessar um momento de grande liquidez. está claro para todos que existirá uma grande consolidação de mercado, que foi acelerada pela pandemia e fortalecida pela crise geopolítica que atravessamos. Temos de nos preparar para a existência de menos players e menos clientes, mas, porventura, mais robustos para enfrentar o futuro de forma mais tranquila e mais estável.
Que futuro antevês para a profissão de pintor de automóveis?
Será, claramente, risonho. Porquê? Porque há mais procura do que oferta. Apesar de termos um problema que já existia e que nunca foi resolvido: a falta de profissionais. É preciso uma estratégia focada na formação e na reconversão, assim como no aumento da atratividade das empresas e das funções.
É impossível retirar da lista de desafios o salário. Desafios que não são novos, mas que temos, de uma vez por todas, de assumir como problemas para que os consigamos resolver, exigindo ao setor e a todos os players que cumpram a sua parte.
Há duas perspetivas neste problema, que gostaria de referir. A primeira, está relacionada com as competências. A segunda, com as condições de trabalho. No caso da primeira, é preciso investir em programas de atualização, reconversão e capacitação de competências. Um trabalho que não pode ser feito longe das empresas, uma vez que é preciso identificar as necessidades para que, depois, possam ser desenvolvidos os programas de aprendizagem.
Ao mesmo tempo, as escolas técnico-profissionais têm de ganhar maior agilidade nos programas, garantindo a adequação dos conteúdos e a ligação ao mercado de trabalho. Também os gestores têm um papel a desempenhar na resolução do problema.
É preciso que coloquem na sua estratégia de negócio as competências que vão necessitar para que possam desenvolver ações hoje. Ao mesmo tempo, têm de aceitar e integrar pessoas que tenham feito programas de reconversão e de desenvolvimento de competência.
Na segunda dimensão do problema, estão as condições de trabalho. É preciso aumentar a atratividade da profissão, melhorar os níveis de retribuição reduzindo a atuação de empresas e trabalhadores, ter uma estratégia de integração de mão de obra estrangeira. Para estas ações, contribui, também, a estabilidade legislativa laboral e a transparência e equidade remuneratória.
Fala-se muito da lei laboral como um dos principais ploblemas. A lei laboral, mais do que ser alterada, precisa de ser cumprida. Nos seus pressupostos e penalizando quem não a cumpra. A constante produção legislativa, sempre assombrada por redações que levantam dúvidas na execução, em nada beneficia as empresas nem os trabalhadores, dando apenas espaço ao incumprimento e à falta de transparência.
Por outro lado, é fundamental deixar que o mercado funcione e que as empresas e trabalhadores tenham agilidade para gerir a sua relação, deixando cair, de uma vez por todas, a ideia de que os “patrões” só querem prejudicar os trabalhadores.
Consideras que as ações Best Painter Contest e WorldSkills marcam a diferença no setor?
Creio que sim. Mas mais do que marcar a diferença, procuram, também, contribuir, de alguma forma, para melhorar a imagem da profissão de pintor de automóveis junto deste segmento de profissionais, como os jovens, tentando torná-la mais atrativa e muito mais capaz de dar resposta aquilo que são, hoje, as necessidades dessas pessoas
Esta é uma das nossas principais funções. Por isso, temo-nos associado e desenvolvimento este tipo de eventos para dar maior visibilidade à qualidade e à especialização, que requerem as aptidões necessárias. Só desta forma é que será possível garantir, no futuro, que continuamos a ter bons pintores e que os jovens vão entender que terão uma oportunidade de ouro para crescer profissionalmente e ter uma vida estável e bem remunerada. É, aqui, que está o desafio.
A área da repintura automóvel evoluiu muito em termos tecnológicos e ambientais nos últimos anos…
Verdade. São temas muito complexos. Na área da repintura automóvel, na sua generalidade, devia haver uma colaboração mais estreita entre quem desenvolve as ferramentas e quem cria as tecnologias.
Seria um caminho mais estável e poderíamos estar num estágio de desenvolvimento ainda maior. Mas há uma parte de tudo isto que continua a ser feita pelos fabricantes de repintura.
Uma está relacionada com os produtos em si. Hoje, a tecnologia permite tornar os produtos mais rápidos, mais eficientes, mais sustentáveis e com menor consumo quer de produto quer de energia, possibilitando o uso de menos compostos orgânicos voláteis e a redução da pegada de CO2, que, nesta área, continua a ser um dos grandes problemas.
Depois, temos tecnologias diferentes, como pigmentos funcionais, por exemplo, que permitem reduzir em até 20° a temperatura dentro do habitáculo do veículo, mesmo com cores escuras. Temos, também, tecnologia de secagem ao ar mais eficiente, que diminui a necessidade de consumo energético e de produto.
Contudo, falta aumentar a literacia digital. Temos feito o nosso caminho, mas estamos a trabalhar para ocuparmos o primeiro lugar com a nossa plataforma Refinity, que permite gerir melhor os recursos e usufruir de todas as vantagens anteriormente mencionadas.
O teletrabalho veio demonstrar fragilidades e revelou um setor assimétrico, que tem de reequilibrar-se. É preciso dar competências, garantir acessos e reduzir custos num setor que se quer mais tecnológico, para que possa competir com os restantes.