A mobilidade elétrica promete um futuro mais limpo. Mas, nos bastidores da transição, multiplicam-se os alertas sobre os entraves na reparação de veículos elétricos (VE). Para o setor do pós-venda, este não é apenas um novo tipo de veículo — é um novo paradigma técnico, económico e regulatório.
Os números são claros: segundo a Mitchell International, empresa de referência em tecnologia para o pós-venda, as reparações de VE custam, em média, mais 30% do que as de veículos com motor de combustão interna (ICE).
Na Europa, o estudo da associação alemã GDV reforça esta tendência, indicando que os VE danificados em acidentes exigem não só mais horas de oficina como, também, mais substituição de componentes, sobretudo eletrónicos.
O principal obstáculo é, também, o coração do VE: a bateria. A ausência de protocolos claros de avaliação pós-acidente leva muitas seguradoras a optar pela substituição total, mesmo quando os danos são mínimos.
Em alguns casos, a simples ativação dos sensores de impacto (ainda que sem dano físico visível) é suficiente para declarar perda total.
Este fenómeno está a ser analisado por entidades como Euro NCAP, que trabalha com fabricantes para padronizar a monitorização da integridade estrutural das baterias.
Até lá, a incerteza técnica é um entrave real: desmontar, diagnosticar e reparar um pack de bateria exige certificação, equipamento e ambiente controlado, algo que muitas oficinas independentes ainda não dispõem.
Apesar da regulamentação europeia (Regulamento UE 2018/858), que garante o acesso das oficinas independentes à informação técnica dos fabricantes, na prática vários construtores ainda dificultam ou atrasam o fornecimento de dados para VE.
Ferramentas de diagnóstico específicas, manuais para intervenções de alta voltagem e procedimentos de reprogramação nem sempre estão acessíveis fora da rede oficial.
Segundo a Cecra (Conselho Europeu do Comércio e da Reparação Automóvel), esta disparidade pode comprometer a concorrência e elevar os custos para os consumidores.
As peças também são uma dor de cabeça: sensores, módulos eletrónicos e componentes da cadeia de tração têm pouca oferta no aftermarket e estão sujeitos a prazos de entrega longos e preços elevados.
Um dos maiores desafios, porém, é humano. Em Portugal, segundo a ANECRA, menos de 15% das oficinas têm pessoal formado para intervir com segurança em sistemas de alta voltagem.
A certificação elétrica — obrigatória para reparações em veículos híbridos ou elétricos — implica formação especializada, que muitas PME ainda não conseguiram integrar no seu plano de atividades.
A somar a isso, está o envelhecimento da classe técnica: a idade média dos mecânicos portugueses ronda os 48 anos, dificultando a adaptação rápida às novas competências digitais e elétricas.
A resposta tem vindo, sobretudo, de redes oficinais e distribuidores com programas de formação contínua, como a Bosch Car Service, a First Stop ou a ATEC, para dar apenas alguns exemplos.
A transformação elétrica é irreversível, mas ainda longe de ser pacífica para o pós-venda automóvel. A reparação de VE exige novos protocolos, novas competências, novos investimentos — e uma verdadeira mudança de mentalidade.
Os desafios não são apenas técnicos: são estruturais. E enquanto se aguarda por baterias modulares, dados partilhados em tempo real e oficinas verdadeiramente 4.0, a realidade é esta: reparar um VE em 2025 é, muitas vezes, mais complexo, mais caro e mais moroso do que se previa.