Uma nova era na relação entre as empresas e os consumidores? Ou uma revolução pacífica e que, na prática, pouco ou nada muda? As opiniões dividem-se quanto aos reais efeitos da nova lei das garantias, em vigor desde o passado dia 1 de janeiro de 2022.
O Decreto-Lei 84/2021 determina que o prazo das garantias dos bens passe de dois para três anos. Mas, por outro lado, inverte o ónus da prova do alegado defeito para o lado dos clientes, como explica Elsa Reis, responsável do Centro de Arbitragem do Sector Automóvel (CASA), em declarações ao Check-up.
Neste artigo, ouvimos alguns dos players do aftermarket nacional, de forma a melhor entender as suas expectativas em relação à nova lei das garantias. Poderá este estender do prazo levar a um aumento do preço dos produtos? E os conflitos com os consumidores, tenderão a aumentar?
CASA: “Cabe ao consumidor provar que a desconformidade existia à data da entrega do bem”
“O Decreto-Lei 84/2021 estabelece um prazo de responsabilidade do profissional (vendedor) de dois anos, em que se inverte o ónus da prova. Ou seja, caberá ao vendedor demonstrar que a desconformidade não existia à data da entrega do bem, para poder afastar a sua responsabilidade”, começa por explicar Elsa Reis, do Centro de Arbitragem do Sector Automóvel (CASA).
“O diploma estabelece um terceiro ano, mas já sem inversão do ónus da prova, cabendo ao consumidor provar que a desconformidade existia à data da entrega do bem. Tendo em conta que o consumidor não dispõe, regra geral, de meios técnicos que lhe permitam tal prova, o terceiro ano de ‘garantia’ poderá não ter grande aplicação prática”, refere.
“Será possível essa prova quando, por exemplo, o produtor assume, publicamente, a existência de determinado defeito. Na minha opinião, e estando numa fase tão embrionária de aplicação deste novo regime, diria que a responsabilidade do setor do pós-venda automóvel se manterá”, acrescenta Elsa Reis ao Check-up.
Segundo diz, “não se deverá confundir, contudo, o prazo de responsabilidade do profissional (vulgo garantia) com o dever de assistência pós-venda previsto no artigo 21.˚ do diploma”.
E explica: “Havendo responsabilidade do profissional no período previsto (ou porque não afastou a responsabilidade, ou porque o consumidor demonstrou a existência da desconformidade no terceiro ano), a desconformidade deverá ser eliminada, sem encargos para o consumidor, através da reparação ou da substituição e da redução do preço ou da resolução do contrato, respeitando a hierarquia dos direitos agora prevista”.
Por outras palavras, “aassistência pós-venda para os bens sujeitos a registo (como o automóvel) significa que ao consumidor deverá ser garantido o acesso a uma assistência pós-venda em condições de mercado adequadas. Não significa que seja gratuita”, alerta.
Mas poderá esta nova lei gerar mais conflitos entre as empresas e os seus clientes? “Se a informação não chegar de forma adequada a ambas as partes, acredito que os conflitos aumentem, principalmente, quando a desconformidade surgir no terceiro ano”, refere.
“Os consumidores mal informados poderão pensar que a ‘garantia’ passará a ser de três anos, funcionando da mesma forma que funcionou até final do ano de 2021. O CASA apostará, este ano, na divulgação junto dos consumidores e tem feito já uma série de ações de formação junto das empresas do setor. Mesmo a Direção-Geral do Consumidor tem feito uma campanha de divulgação nas redes sociais”, revela.
O pós-venda automóvel trabalha com margens de lucro, por vezes, já muito reduzidas. Esta lei poderá traduzir-se em aumentos para o cliente final?
“Apesar de o período final da garantia depender da prova do consumidor que, como já referi, será bastante difícil, é provável que os pequenos retalhistas da venda de usados venha a fazer repercutir eventuais custos com a garantia no preço final, tendo em conta a garantia adicional após cada reparação”, defende Elsa Reis.
Outro aspeto da nova lei prende-se com a obrigatoriedade das marcas garantirem a disponibilidade de peças para reparação dos equipamentos vendidos por uma década.
Sobre este assunto, Elsa Reis começa por explicar que “a marca não está obrigada a fabricar peças pelo período de 10 anos, mas sim a disponibilizar peças”.
E continua: “Para tal, será possível recorrerem ao mercado, de forma a garantir o fornecimento. Poderá considerar-se 10 anos um período excessivo se estivermos a falar de um eletrodoméstico, mas, no setor automóvel, parece-me um prazo razoável. Já nos chegaram situações em que não havia peças para substituir numa reparação de um veículo com dois ou três anos”.
E vai mais longe: “Num bem de valor, como o automóvel, torna-se grave a impossibilidade de reparação por falta de peças no mercado. Situação bem diferente é a que o setor atravessa, de falta de peças, em virtude da situação pandémica que atravessamos. Nesse caso, estamos numa situação de força maior, e da qual não se pode assacar responsabilidades a ninguém”.
E será que Elsa Reis considera que a aplicação desta lei deveria ser mais adaptável e flexível consoante as áreas de atividade? “O setor automóvel é uma atividade com muitas especificidades, que representa uma grande fatia do comércio e talvez merecesse um regime adaptado. Facilitaria, em muito, a aplicação da lei ao caso concreto. Ainda assim, não há soluções perfeitas”, responde.
Autozitânia: “Que linha separa defeito de fabrico de desgaste do produto, no nosso caso, peças para automóveis?”
A Autozitânia tem acompanhado, de perto, esta nova lei das garantias. “O Decreto-Lei 84/2021 é a transposição para a ordem jurídica interna da Diretiva (UE) 2019/770, do Parlamento Europeu e do Conselho, de 20 de maio de 2019, que prevê a extensão da garantia de dois para três anos ao consumidor final (bens móveis). Esta diretiva prevê reforçar o direito do consumidor final. Porém, não é um tema fácil, pois qual é a linha que separa defeito de fabrico de desgaste do produto, no nosso caso peças para automóveis?”, questiona Luís Antunes, diretor de operações do Grupo Autozitânia.
“Por regra”, acrescenta o responsável, “os defeitos de fabrico nas peças auto, são manifestados no início da utilização e não após três anos. Julgo que poderá criar mais ruído num tema já de si muito sensível, sobretudo quando é difícil explicar a um cliente que a peça não tem qualquer defeito. A Autozitânia vai, juntamente com os seus fornecedores e clientes, cumprir a legislação em vigor”, assegura Luís Antunes ao Check-up.
O diretor de operações do Grupo Autozitânia não descarta a existência de problemas entre empresas e clientes. “Sim, é possível que aumentem os conflitos. Como já referido, a questão das garantias é um tema muito sensível no nosso setor e, desta forma, estamos a prolongar a possibilidade de conflito em mais um ano”, sublinha o responsável.
“Certamente que não existirá um aumento direto no preço da peça por causa desta lei. Julgo que, neste momento, o mais importante é ir acompanhado qual o impacto que esta alteração na lei pode trazer”, afirma.
Já sobre o novo prazo imposto aos fabricantes para garantirem a existência de peças para reparação, na sua opinião, “tem como objetivo garantir ao consumidor que não tem problemas na reparação nos primeiros 10 anos de vida, que não está a comprar um bem cuja reparação pode ficar em causa por falta de peças”, salienta Luís Antunes.
BENZolutions: “Estas novas regras de garantias não me parecem equilibradas e são pouco coerentes”
Pedro Sardinha, CEO da BENZolutions, por sua vez, não esconde as críticas a esta nova lei. “Estas novas regras de garantias não me parecem equilibradas e são pouco coerentes. Existem duas situações de clientes diferentes em relação as regras. No caso da BENZolutions, trabalhamos apenas com profissionais (oficinas). Quem trabalha diretamente com o chamado ‘consumidor’, que será o cliente final, os prazos de resposta são diferentes”, adianta.
“No nosso caso, como importadores, temos de nos adaptar ao facto de comprar com um ou dois anos nos fornecedores estrangeiros e vender com três anos de garantia”, realça.
“A nossa salvaguarda é a qualidade dos materiais que comercializamos. Como a qualidade dos produtos é de topo, o risco ou perda são minimizados”, refere o responsável da empresa especialista em soluções para Mercedes-Benz.
“As dificuldades”, acrescenta Pedro Sardinha, “podem surgir no tempo de resposta a análise de garantia de fabrico”, avisa. “Neste ponto, quem trabalha diretamente com o consumidor, tem 30 dias para dar resposta. No caso de vender a profissionais, este prazo não é o mesmo”, dá conta.
“Os casos de garantia, são sempre muito delicados. Aqui, fazemos uma primeira análise no nosso departamento técnico. Nesta análise, verificamos o produto por forma a perceber se, de facto, o erro é de fabrico ou se foi de má utilização ou defeito de montagem”, revela.
“No caso de ser detetado um possível defeito de fabrico, o produto tem de ser enviado para a fábrica e é neste ponto que as coisas se complicam em termos de tempo de resposta. Entre o envio do produto para a fábrica e a análise do produtor, 30 dias não são suficientes”, acusa o CEO da BENZolutions.
Pedro Sardinha antevê conflitos entre empresas e consumidores, “devido à diferença de tempo na resposta à garantia”. E considera possível que certas empresas sejam obrigadas a “aumentar” o preço dos produtos, embora admita que “este é um cálculo muito difícil de efetuar”.
Quanto aos 10 anos de disponibilidade das peças impostos aos fabricantes, considera positivo. “As marcas estão lá para vender carros novos. Neste aspeto, o aftermarket fica beneficiado, uma vez que o parque automóvel tem uma idade avançada. Ainda rolam nas estradas muitos carros da década de 90”, afirma.
EuroMais: “É preciso estar bem preparado em termos de informação para responder adequadamente aos problemas que surgirem”
“É preciso ler muito bem o decreto-lei para não entrarmos em pânico com a situação”, começa por afirmar Manuel Félix, managing director da EuroMais.
“Penso que, no que diz respeito ao aftermarket, não trará grandes problemas. Será mais ao nível dos fabricantes. A EuroMais irá aplicar aquilo que a lei determinar, como sempre”, garante ao Check-up.
Ainda assim, Manuel Félix admite que a nova lei crie algumas situações negativas entre clientes e empresas. “Vai, com certeza, gerar conflitos, pois, como consumidores, existirá a ideia que teremos direito a tudo, quando não é a realidade. É preciso estar bem preparado em termos de informação para responder adequadamente aos problemas que surgirem”, explica.
E um eventual aumento dos preços dos produtos? “Penso que sim. O pós-venda irá tentar reagir, precavendo-se contra eventuais reclamações. Isso seria o normal”, diz Manuel Félix, que classifica como “um pouco exagerado” o período de 10 anos de obrigatoriedade imposto aos fabricantes para continuarem a ter peças de reposição.
“Como é óbvio, isso terá repercussões nos preços, porque a manutenção dos stocks dessas peças custará mais dinheiro e alguém vai ter de pagar esses custos”, preconiza o managing director da EuroMais ao Check-up.